Democracia "à la sinistra"
Num folheto do PCP sobre a questão do aborto e sob o sugestivo título: «Mudar a lei do aborto sem recurso a referendo» escrevia-se em Março de 2005: «O PCP rejeita a ideia de que seja necessário novo referendo. Recorda-se que o referendo de 1998 tem sido invocado para tentar negar a plena legitimidade da AR para legislar sobre a matéria. Acontece que tal referendo não teve carácter vinculativo, visto que votaram apenas 31,9% dos eleitores. E mesmo que tivesse tido mais de 50% de votantes o seu efeito vinculativo já teria há muito caducado, passados que são oito anos dessa consulta.»(*)
Jerónimo de Sousa tem comprovado a coerência do seu partido nesta questão ao continuar a defender que a alteração à lei existente deveria ser realizada sem consultar a população, uma vez que isso acarretará incerteza quanto ao resultado. Naturalmente a ideia de incerteza quanto ao resultado é central ao processo democrático mas também é evidente que essas «particularidades» nunca foram do agrado dos comunistas, que simplesmente, e por força das circunstâncias, se viram forçados a aceitar a participação política baseada nesses métodos.
O que é interessante naquela posição dos comunistas nem é tanto o argumento do carácter vinculativo mas a ideia de que mesmo que o tivesse não faria qualquer diferença, «passados que são oito anos dessa consulta». De acordo com esta posição ficamos a saber que o resultado do novo referendo, seja vinculativo ou não, é irrelevante, já que daqui a meia dúzia de anos não há qualquer razão para o não alterar em sede parlamentar, mesmo, naturalmente – reconhecerá o PCP coerentemente –, se esta nova consulta tiver o desfecho que o partido pretende.
O que isto pressupõe é, obviamente, uma perda de legitimidade dos mecanismos de democracia directa para além deste caso específico. Se as decisões populares assim definidas valem simplesmente durante um curto período, presume-se que durante o governo de um determinado partido – pois que com a vitória de outro a Assembleia da República assume novo contorno ideológico e pode ganhar as condições de alterar essas leis –, não há qualquer lógica que justifique a existência dessas consultas à população. Claro que uma decisão referendada não tem de vigorar indefinidamente, mas parte-se do princípio que deve valer por um tempo alargado e para além da vontade estritamente parlamentar, será esse um dos objectivos subjacentes a este tipo de processos democráticos que, caso contrário, seriam realmente desapropriados.
Ou seja, o PCP não gosta da democracia directa nem a entende, ponto. Já sabíamos que os marxistas não eram propriamente os maiores entusiastas da democracia representativa, tradicionalmente apresentada como sistema de dominação burguesa sobre o proletariado, ficamos agora também conscientes (falo com ironia pois não creio que alguém não o soubesse já) que a democracia directa também não lhes serve.
Aliás, o mesmo texto mostra bem que o PCP, para além de não perceber a lógica da participação directa, tem dificuldades em interpretar o funcionamento da própria democracia representativa. Lemos mais à frente:
«Despenalizar a interrupção voluntária da gravidez na Assembleia da República sem referendo prévio não significa desrespeitar a vontade dos (as) eleitores (as) porque das últimas eleições saiu uma ampla maioria parlamentar constituída por forças que, na campanha eleitoral, se afirmaram favoráveis à despenalização do aborto».
É verdade, mas esqueceram-se de referir que uma dessas forças, curiosamente a que ganhou as eleições (e não foi o PCP), também prometeu durante a campanha eleitoral não alterar a lei da IVG na Assembleia da República sem consultar novamente o povo. E embora isto possa parecer estranho para o PCP, estas coisas são, em princípio (e reforço isto porque, como sabemos, a realidade é muitas vezes outra), para cumprir, e é isso que supostamente credibilizará o processo democrático assente em formas representativas.
Não é que o PS tenha demonstrado com a sua decisão maior compreensão das instituições democráticas que os seus confrades de extrema-esquerda; bem nos lembramos que o partido socialista também pretendeu, a dado momento e contra os seus compromissos de campanha, alterar a lei no parlamento, posição que reunia o apoio de BE e PCP …simplesmente, Sócrates, consciente de que já havia mentido aos portugueses na questão dos impostos, achou por bem ter algum pudor, foi mais uma posição tomada por contingências políticas do que por convicção democrática. No fundo, esta incompreensão do PCP face aos factores de idoneidade da própria democracia representativa (porque quanto à directa estamos falados) - como o programa eleitoral - pode até ser relativizada quando os «primos socialistas» também não parecem ter sobre isso mais que uma posição utilitária, de conveniência.
(*)Folheto comunista
Jerónimo de Sousa tem comprovado a coerência do seu partido nesta questão ao continuar a defender que a alteração à lei existente deveria ser realizada sem consultar a população, uma vez que isso acarretará incerteza quanto ao resultado. Naturalmente a ideia de incerteza quanto ao resultado é central ao processo democrático mas também é evidente que essas «particularidades» nunca foram do agrado dos comunistas, que simplesmente, e por força das circunstâncias, se viram forçados a aceitar a participação política baseada nesses métodos.
O que é interessante naquela posição dos comunistas nem é tanto o argumento do carácter vinculativo mas a ideia de que mesmo que o tivesse não faria qualquer diferença, «passados que são oito anos dessa consulta». De acordo com esta posição ficamos a saber que o resultado do novo referendo, seja vinculativo ou não, é irrelevante, já que daqui a meia dúzia de anos não há qualquer razão para o não alterar em sede parlamentar, mesmo, naturalmente – reconhecerá o PCP coerentemente –, se esta nova consulta tiver o desfecho que o partido pretende.
O que isto pressupõe é, obviamente, uma perda de legitimidade dos mecanismos de democracia directa para além deste caso específico. Se as decisões populares assim definidas valem simplesmente durante um curto período, presume-se que durante o governo de um determinado partido – pois que com a vitória de outro a Assembleia da República assume novo contorno ideológico e pode ganhar as condições de alterar essas leis –, não há qualquer lógica que justifique a existência dessas consultas à população. Claro que uma decisão referendada não tem de vigorar indefinidamente, mas parte-se do princípio que deve valer por um tempo alargado e para além da vontade estritamente parlamentar, será esse um dos objectivos subjacentes a este tipo de processos democráticos que, caso contrário, seriam realmente desapropriados.
Ou seja, o PCP não gosta da democracia directa nem a entende, ponto. Já sabíamos que os marxistas não eram propriamente os maiores entusiastas da democracia representativa, tradicionalmente apresentada como sistema de dominação burguesa sobre o proletariado, ficamos agora também conscientes (falo com ironia pois não creio que alguém não o soubesse já) que a democracia directa também não lhes serve.
Aliás, o mesmo texto mostra bem que o PCP, para além de não perceber a lógica da participação directa, tem dificuldades em interpretar o funcionamento da própria democracia representativa. Lemos mais à frente:
«Despenalizar a interrupção voluntária da gravidez na Assembleia da República sem referendo prévio não significa desrespeitar a vontade dos (as) eleitores (as) porque das últimas eleições saiu uma ampla maioria parlamentar constituída por forças que, na campanha eleitoral, se afirmaram favoráveis à despenalização do aborto».
É verdade, mas esqueceram-se de referir que uma dessas forças, curiosamente a que ganhou as eleições (e não foi o PCP), também prometeu durante a campanha eleitoral não alterar a lei da IVG na Assembleia da República sem consultar novamente o povo. E embora isto possa parecer estranho para o PCP, estas coisas são, em princípio (e reforço isto porque, como sabemos, a realidade é muitas vezes outra), para cumprir, e é isso que supostamente credibilizará o processo democrático assente em formas representativas.
Não é que o PS tenha demonstrado com a sua decisão maior compreensão das instituições democráticas que os seus confrades de extrema-esquerda; bem nos lembramos que o partido socialista também pretendeu, a dado momento e contra os seus compromissos de campanha, alterar a lei no parlamento, posição que reunia o apoio de BE e PCP …simplesmente, Sócrates, consciente de que já havia mentido aos portugueses na questão dos impostos, achou por bem ter algum pudor, foi mais uma posição tomada por contingências políticas do que por convicção democrática. No fundo, esta incompreensão do PCP face aos factores de idoneidade da própria democracia representativa (porque quanto à directa estamos falados) - como o programa eleitoral - pode até ser relativizada quando os «primos socialistas» também não parecem ter sobre isso mais que uma posição utilitária, de conveniência.
(*)Folheto comunista
3 Comentários:
Mesmo a calhar, leia:
«A deputada socialista Ana Catarina Mendes esclareceu ontem que se os resultados do referendo não forem vinculativos e se o ‘não’ tiver maior votação do que o ‘sim’, “há” espaço para legislar na Assembleia da República»
No Correio da Manhã,via Último Reduto.
Ainda bem que abriu outra vez o blog aos comentadores que não são registrados. Acabou a censura?
Foi um problema do template do blog.
O PCP sp foi um partido muito democrático..então no que toca a votações...ui..
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