segunda-feira, setembro 25, 2006

A estratégia da mentira

Na Hungria, o reconhecimento (trazido a público) por parte do primeiro-ministro socialista de que havia mentido à população sobre a situação económica do país e que o programa eleitoral que o levou à reeleição não poderia, em face disso, ser cumprido, que era apenas uma manobra eleitoralista para conseguir a continuidade no governo, encaminhou para as ruas milhares de cidadãos revoltados exigindo a sua demissão. Cinicamente, confesso que a única coisa que acho invulgar no caso é a forma como trespassou para o público a gravação daquelas conversas internas. Não há, verdadeiramente, nada de particularmente extraordinário no resto, ocorre dizer: «Hungria, bem vinda à democracia».

A verdade é que pela sua natureza a democracia moderna é, por excelência, reino de demagogia, que deriva naturalmente da necessidade imposta pelo eleitoralismo existente, promete-se tantas vezes o que à partida não pode, em consciência, ser realizado, pois o objectivo é chegar ao poder e lá permanecer o maior tempo possível (e nada mais que isso – é flagrante a completa ausência de projectos políticos mobilizadores, nada mais temos que a alternância dos mesmos de sempre na gestão corriqueira do situacionismo conjuntural), e o meio de o fazer e de lá se manter é oferecendo, continuadamente, à imaginação das massas de votantes a mentira, o «melhor dos mundos» e conseguido sem grandes chatices. Mandam as multidões que nada mandam que lhes mintam na cara, merecidamente, a maior parte conforma-se, habitua-se. Aqueles que do sistema vivem e os órgãos de informação que servem o dito cujo encarregam-se de manter sempre presente sobre as populações os fantasmas que asseguram a eternização das oligarquias vigentes, debaixo da ideia de que chegámos, neste caso, a um fim da história…

Na sua breve apresentação do livro de Thierry Desjardins, «Assez!», Lambert Christian afirma: «Como em democracia, mesmo relativa, é imperativo seduzir a opinião, a tentação de praticar a estratégia da mentira é grande»(Électoralisme : la stratégie du mensonge, Les 4 Vérités, nº 556)

Depois, reportando-se exclusivamente ao caso francês, dá dois exemplos concretos (mas que são completamente transponíveis para a realidade portuguesa): a distorção oficial dos números relativos ao desemprego e a manipulação dos dados referentes ao número de imigrantes e os seus custos para o Estado( O Instituto de Geopolítica das Populações, desafiando as informações que sobre o assunto se procuram divulgar, estima em 80% do défice orçamental o custo total da imigração e sua integração em França).

Por cá não precisamos de recuar muito para encontrar exemplos flagrantes da «estratégia da mentira», notem-se as diferenças de orientação nas promessas apresentadas pelo actual governo antes de ser eleito e as decisões tomadas depois de atingido o «El Dorado» no caso da política fiscal. E não entremos sequer na discussão dos dados económicos e sociológicos que manipulam e naqueles que nos ocultam. Não mais sairíamos daqui…

Esta «estratégia da mentira» é o próprio âmago das democracias-liberais modernas, Ferenc Gyurcsány teve simplesmente «azar», foi ironicamente apanhado num momento de franqueza privada.

Será interessante analisar a forma como a direita imaculadamente democrática e sensata tem vindo a lidar com a questão. Os húngaros, ainda algo novatos nestas coisas da «classe discutidora», reagiram nas ruas (mais uns anitos e aquilo passa-lhes, acostumar-se-ão, os ingénuos) e ao fazê-lo obrigaram a direita «moderada e respeitável» ao envolvimento, directo ou indirecto, nas manifestações, caso contrário teriam sido deixadas exclusivamente nas mãos da direita radical, o que, está bom de ver, seria má estratégia eleitoral para a «boa direita».

Mas muitos sectores dessa direita não escondem a intenção de permitir ao actual governo completar o mandato. Afinal, vêm aí as eleições locais e após o escândalo a «boa direita» tem plena consciência de que será recompensada, e depois, nas próximas legislativas, a vitória apresenta-se também muito próxima, não só porque o escândalo continuará presente, e disso se assegurará a oposição fazendo também ela bom uso da demagogia e da «estratégia da mentira», como as medidas que foram anunciadas pelo governo socialista, de austeridade e sacrifício, garantirão o mote perfeito para o eleitoralismo triunfante, com a vantagem que advirá do facto de as reformas problemáticas mas necessárias terem então sido já parcialmente ou totalmente realizadas(o que não deixa de constituir menos um fardo). Aconteça o que acontecer é uma situação de «ganho-ganho». Torna-se simplesmente necessário acompanhar e controlar o poder da direita «dura» nas ruas, porque é fulcral não deixar fugir a imagem de liderança da oposição perante as massas de votantes.

segunda-feira, setembro 04, 2006

Ernst von Salomon - O questionário de um proscrito

A partir de 1919,com apenas 17 anos, Ernst von Salomon está nos Freikorps, combate no Báltico contra os comunistas e na Silésia contra os polacos que procuram anexar essas terras, os seus companheiros lutam, igualmente, contra os movimentos separatistas, na Baviera e na Renânia, contra os partidários de Marx e Engels que, quais abutres, aproveitam a derrota alemã na primeira guerra para alastrar a sua mensagem subversiva.

Os altos responsáveis da República de Weimar mostram-se, perante esta Alemanha humilhada pelo tratado de Versailhes, controlada pelos “aliados”, à beira da fragmentação interna, fracos, quando não condescendentes. Não é já só a humilhação a que foi sujeitada a nação a partir do exterior que move os movimentos de resistência nacional, é a indignidade interna do governo instalado.

A revolta cresce e expande-se, dos veteranos da primeira guerra ao povo anónimo. Juntam-se, nesses “corpos livres”, voluntários dos mais diferentes meios, desde homens formados nas academias militares, filhos de oficiais, a antigos soldados rasos e gente sem experiência militar. O chamamento unificador da pátria vexada começa a agregar, ali ultrapassam-se as questiúnculas de “classes”, marcha-se então por cima da cartilha marxista, o "mito" da nação mostra-se mais forte que o da consciência classista, o inimigo principal começa a surgir claramente aos olhos desses voluntários nacionalistas do pós-guerra: É o novo “Deutsches Reich”, a nova ordem que emana de Weimar, é a democracia-liberal imposta pelos “aliados” à nova Alemanha que enfraquece a pátria, com o seu patético espectáculo de divisionismo parlamentarista, de pequena politiquice num país já de si à beira da ruína. Se a extrema-esquerda não aceita o novo regime porque está apostada em realizar ali o que fora conseguido na Rússia, para os nacionalistas a democracia-liberal é um corpo estranho à tradição da orgulhosa pátria imperial, alicerçada sobre a honra, o heroísmo e a autoridade; nauseia o constante comprometimento, os meios-termos, as meias-medidas, a dissimulação partidária, as discussões sobre coisa alguma…

O regime de Weimar mostra-se incapaz de assegurar a ordem interna, aniquilar os movimentos marxistas de secessão e reagir aos ditames de Versailhes que subjugam a Alemanha, de forma vergonhosa, ao estrangeiro. Walther Rathenau, ministro dos negócios estrangeiros da República, é, no período, um dos homens mais proeminentes da nova democracia, grande responsável pelas negociações das condições impostas pelos vencedores ao povo germânico. Defende a necessidade de cumprir com as imposições de Versailhes ao mesmo tempo que negoceia o tratado de Rapallo com a União Soviética. Em 1922 é assassinado por membros dos Freikorps, entre eles Ernst von Salomon. Por isso este passará 5 anos na prisão.

Em 1930, no seu “Die Geächteten”(Os Proscritos), relatará os tempos passados na prisão e a luta desses corpos de voluntários em defesa da Alemanha, esses homens, camaradas de revolta, sem ideal político sistematizado, representantes antes de uma visão do homem perante a realidade, a exaltação do dever, a não rendição, a rebelião, o culto da acção, reagindo instintivamente às agressões percepcionadas contra a sua memória histórica colectiva, como se reage quando nos atacam a família, serão os “proscritos” da Prússia vencida, o mesmo é dizer os que não se predispuseram a ser vassalos. Eles foram os filhos fiéis de uma pátria controlada por um Estado que viam como desleal para com o seu povo, inimigos do Estado porque cumpridores da nação.

Com a ascensão de Hitler ao poder von Salomon assiste ao desenrolar da História com algum distanciamento e vive, durante o regime, com a sua companheira judia. A sua luta estava travada, derrubar o Estado colaboracionista de Weimar, vingar o ultraje pátrio de que essa República fora expoente.

Naqueles tempos que sucederam à primeira derrota alemã, a revolução reunia todas as contradições em torno de um único objectivo claro, a restauração de uma Alemanha autenticamente soberana, senhora de si, portadora de uma identidade própria. É Ernst von Salomon que o define na perfeição quando afirma que todos aqueles combatentes aglomerados nos Freikorps não tinham ainda precisado as suas ideias quanto à organização do Estado, reagiam simplesmente contra a insidiosa situação em que o país havia caído.

Seriam precisamente esses “revolucionários conservadores” que naqueles agitados anos se dedicariam, progressivamente, em inúmeros artigos, livros e conferências, a fornecer à Alemanha uma ideia de si, definindo conceitos, apontando caminhos, relembrando a História.

Com Hitler não se consegue identificar, sempre havia tido uma postura aristocrática, cultivado um sentido de autoridade e hierarquia e desagradava-lhe aquele populismo nazi, aquela imagem que Hitler tinha de homem das massas.

De ascendência veneziana e tradição monárquica Ernst von Salomon não era um anti-semita, o culto da raça interessava-lhe sobretudo em termos espirituais, não era a “raça ariana” mas o espírito prussiano que exaltava. Esse espírito prussiano identificava-o com a coragem, o cumprimento do dever, com um sentido trágico da vida e épico da morte.

Não servia partidos mas apenas a nação. Eram, pois, as horas difíceis, quando não eram partidos que o exigiam mas a própria nação que estava em jogo, que lhe importavam. Por isso ofereceu-se novamente em 1939 para combater na segunda guerra, tendo porém sido rejeitado pelos serviços militares…

Finda a guerra é novamente preso, desta vez pelos americanos. Levado para um dos campos de detenção é violentamente agredido por militares e testemunha vários actos semelhantes praticados sobre compatriotas seus bem como violações de mulheres germânicas, perante o gozo, as gargalhadas ou o voyeurismo passivo dos soldados norte-americanos.

A Alemanha vencida é agora dividida em 4 partes, que ficam sob administração francesa, inglesa, norte-americana e soviética. Na zona americana implementa-se intensivamente um plano de “desnazificação” que leva, para além do processo de Nuremberga, ao julgamento de 169 282 alemães, contra 22 296 na zona inglesa e 18 000 na zona sob administração soviética.

Na zona sob controlo americano é elaborado, no âmbito da “desnazificação” da população, um questionário com 131 perguntas ao qual são obrigados a responder todos os maiores de 18 anos. De acordo com as respostas cada alemão poderia ser classificado em 5 grupos cujas sentenças podiam passar, por exemplo, pela pena de morte, a expropriação dos bens pessoais, o impedimento de exercer qualquer profissão que não fosse de trabalho manual ou a absolvição de culpa. Foram emitidos 12 000 000 de questionários que resultaram em 930 000 sentenças.

Ao abrigo da conferência de Postdam, que decidira que todas as pessoas hostis aos propósitos dos aliados deveriam ser eliminadas de qualquer cargo de responsabilidade e substituídas por funcionários “apropriados à implementação das ideias democráticas” e que o povo alemão deveria ser submetido a programas de “reeducação”, os americanos retiraram o emprego a 141 000 alemães, destituíram 80% dos professores e impediram 50% dos médicos de exercerem a sua profissão, isto num país a atravessar inúmeras carências na área da saúde.

Entretanto, Roosevelt, com a directiva J.S.C. 1067, dá ordens claras para levar a Alemanha à falência económica, reduzindo-a a um Estado agrário, e afirma a intenção de castigar todo o povo alemão, sujeitando-o à fome e humilhação. Só posteriormente, quando os interesses económicos norte-americanos compreenderam que o mercado europeu, do qual necessitavam, estava dependente da recuperação alemã foi alterada a sua estratégia para o país.

A vontade de rebaixamento da Alemanha levou mesmo à perseguição da aristocracia e à investigação de pessoas que tivessem “von” no nome.

A tudo isto assistiu Ernst von Salomon, bem como os milhões de alemães que foram submetidos ao domínio aliado, especialmente americano. A tudo isto respondeu Ernst von Salomon num pungente livro datado de 1951, “Der Fragenbogen”( O Questionário – as respostas às 131 questões do Governo Militar Aliado). O livro, que foi publicitado nos EUA como um manifesto alemão anti-americano, sobretudo a partir dos círculos de influência judaica, teve um grande acolhimento popular. Foi escrito com fervor patriótico, sem ceder a manifestações de contrição pública, sem reconhecimentos oportunos de descoberto democratismo – ele que talvez se pudesse ter prestado a esse papel por nunca ter feito realmente parte do establishment nazi, que se considerou sempre um prussiano, não um alemão, que considerou sempre como sua bandeira a da Prússia imperial, que não se revia no ideal ariano do nacional-socialismo( “se não tivesse nascido prussiano teria escolhido sê-lo”).

O livro é escrito num registo altivo, como quem se dirige aos americanos, e aos “democratas ocidentais” em geral, olhando de cima para baixo, é pleno da mais fina ironia, da crítica mais mordaz, e é isso que incomodou…aquele homem, no meio das ruínas, manteve-se de pé, não quebrou, como quebrado pela vergonha e pela culpa deveria estar todo o alemão, em penitência, em expiação. Pior, com o “Questionário” exortou o seu povo a não quebrar também, a não se justificar, a elevar-se uma vez mais, a socorrer-se do “espírito prussiano”, a mostrar orgulho na sua identidade, a procurá-la no fundo da sua memória e a não permitir que esta fosse recriada pelos vencedores conforme a sua vontade, a não permitir que impusessem à “Prússia” um regime estranho à sua natureza. O espelho que o livro coloca à frente da moralidade americana, denunciando-a em toda a sua falsidade, contando a história como ela não pode ser contada, nos antípodas das fábulas hollywoodescas, é um exercício de impertinência imperdoável.

Este livro tem um simbolismo próprio que ganha significado na vida do seu autor, ele encerra um ciclo, representa um regresso à origem:

-Quando muito jovem adere aos Freikorps do capitão Erhardt, a menos numerosa das unidades e uma das mais activas dos “corpos”; depois das batalhas na Silésia e na Renânia entra na “Warte”, um exíguo grupo de poucas dezenas de homens, uma elite de escolhidos entre os comandados de Erhardt. Não foi por acaso que escolheu voluntariar-se para a mais pequena das unidades e uma das que desempenhava missões mais difíceis, era assim que deveria ser pois era essa a forma mais heróica de combater, inspirado pela ideia de Goethe de que o soldado deve escolher a tropa mais pequena, a guerra mais difícil. Combatia do lado de poucos contra muitos, como se lutasse sozinho contra os outros. Era-lhe apelativo esse sentido de desproporcionalidade, essa atitude de rebelião, esse confronto da qualidade com a quantidade. Mas se nos tempos que se seguiram à primeira derrota alemã combatia quase sozinho, não o fazia por si mas pela pátria, pelo povo, numa atitude autenticamente aristocrática.

-Depois, quando o ciclo da História trouxe o peso e o êxtase das multidões, o signo do número, uma vaga de restauração nacional, sob a direcção de Hitler, afastou-se, tornou-se um contemplador, ali já não combateria sozinho, não seriam já poucos contra muitos, não haveria batalhas impossíveis a travar. Não estaria já entre os selectos, os derrotados da História que se recusavam a sê-lo, apenas poderia ser mais um de entre os vencedores momentâneos, e esse nunca foi o papel que lhe interessou, faltava o sentido trágico da vida que o atraía…

-E finalmente o ciclo encerra-se com a segunda derrota alemã, a definitiva. Tendo assistido ao sofrimento do seu povo às mãos dos libertadores, testemunhado as purgas, acompanhado a “reeducação” da população e a reconstrução da memória colectiva da Alemanha, olha em volta e vê novamente um país caído, um povo perdido, não existem já multidões exaltando a pátria mas novamente o ultraje e àquele corpo já maduro regressa o espírito aristocrático prussiano de um jovem cadete adolescente que fora ensinado a morrer pela nação. É novamente a oportunidade de se juntar ao mais pequeno exército e travar a mais difícil guerra, de estar contra a corrente da História. Desta vez, sem os seus camaradas dos Freikorps, está ainda mais sozinho, só contra muitos, contra quase todos, como sempre preferira, mas não lutará por si, lutará uma vez mais, como sempre fizera, pelo espírito prussiano, por um ideal, pelo seu povo, e então, aludindo à divisão em 4 zonas da Alemanha ocupada, dirá solene:”Hoje sou o representante da quinta zona, da zona alemã…”.