sexta-feira, março 03, 2006

Anatomia da democracia(1 de 3)

James Burnham foi um daqueles homens que fez um trajecto político invulgar. Começou por ser um trotskista e acabou como referência de alguns dos mais importantes autores da direita americana. Homem de indiscutível inteligência ficou sobretudo conhecido pelo livro “The Managerial Revolution” que apesar de alguns méritos, sobretudo a ideia central da emergência de uma “nova classe” reinante, contém também algumas análises manifestamente incorrectas, nomeadamente no que concerne ao processo de formação dessa “nova classe”.

Contundo, a sua mais interessante obra é “The Machiavellians”, uma reflexão sobre a natureza da democracia. No essencial retira-se deste livro de Burnham que a democracia, literalmente entendida, não existiu, não existe e nunca existirá em qualquer sociedade com um mínimo de complexidade, é uma impossibilidade, um mito.

O livro é não só uma excelente introdução ao pensamento dos autores “maquiavélicos” como, em última análise, nas suas conclusões e prescrições, um excelente tributo, mesmo se inconscientemente, ao próprio Nicolau Maquiavel. A análise de Burnham centra-se em 3 autores, Gaetano Mosca, Vilfredo Pareto e Robert Michels, os “maquiavélicos”, mas Sorel não deixa de ser comentado.

Burnham, que escreve em defesa da democracia, acabará por reconhecer que a ideia democrática, enquanto “auto-governo” ou “governo pelo povo”, é ilusória. Defenderá então que a questão se deve centrar não na definição tradicional de democracia mas na ideia de “liberdade”. Assim, o objectivo de uma democracia passa a ser garantir as formas de limitar a autoridade da elite reinante, seja ela qual for, e não o exercício do poder pelo povo.

Para a contextualização do problema democrático ele recorre aos 3 autores citados.

Gaetano Mosca afirma que o governo pela maioria, que constitui a ideia base da democracia é impossível. Ele defende que em qualquer sociedade, independentemente da sua organização política, existe sempre uma elite, uma minoria, que domina. Fá-lo através de “mitos” que mantêm a sociedade coesa, facilitando a normalização dos hábitos que permitem prever e controlar os comportamentos da maioria dirigida. Quando surge uma crise e a maioria rejeita os mitos, contestando o poder da minoria, esta recorre à fraude de forma a reter esse poder. Se a fraude é exposta e a maioria reage a elite recorre à força como solução última.

Segundo Pareto, se essa revolta da maioria for bem sucedida, em circunstância alguma surgirá um “governo do povo”, ou da maioria, uma democracia se quisermos, o que acontecerá será a simples substituição de elites, a nova elite sairá dos revoltosos, surgirão como “representantes do povo”, mas estabelecer-se-ão sempre como uma nova minoria dominante sobre uma nova maioria. Dos 5 pontos fundamentais que Burnham identifica em Pareto como explicativos da sociedade e das suas mudanças há um que assume particular importância: a ideia de “circulação das elites”. Pareto afirma que os homens não estão igualmente distribuídos na escala social. No topo há uma pequena minoria, existem mais alguns no meio e a esmagadora maioria encontra-se no fundo da escala. A elite é sempre uma minoria, que se divide numa elite que detém o poder e numa elite que o não possui. É o carácter da elite que define a qualidade da sociedade. A elite não é estática e numa sociedade ideal a circulação de elites garantiria que os mais aptos chegassem ao topo, pelas suas capacidades. O problema, afirma Pareto, é que essa sociedade não existe, e dessa forma os princípios de selecção das elites não assentam exclusivamente na competência mas em princípios de selecção diferentes ( a hereditariedade, por exemplo). Isto faz com que eventualmente a fraqueza e a mediocridade se instalem no seio das elites e se dê uma mutação social.

Robert Michels, por seu lado, estudando as dinâmicas dos movimentos de massas afirma algo que me parece evidente: nenhum movimento poderá triunfar sem uma organização. Ora como a própria natureza de uma estrutura organizativa implica uma hierarquia, uma definição de autoridade, haverá sempre quem detenha mais poder que a maioria. Esta asserção de Michels é obviamente legitimada ou verificada pela História, logo é uma lógica intransponível, ela é inerente à organização social. Daqui resulta a inevitabilidade da existência de oligarquias em qualquer regime. Os líderes têm de assumir o poder de modo a conseguirem responder aos anseios dos liderados, mas eles fazem-no de acordo com as suas próprias ideias e de acordo com as suas próprias condições. As características mecânicas, técnicas, psicológicas e culturais de uma organização requerem sempre uma liderança, isso implica que os líderes, e nunca as massas, exerçam o poder. Esta tendência não é nem arbitrária nem casual nem temporal, é intrínseca à natureza de qualquer organização, não se lhe pode por isso fugir. Chama-lhe a Lei de Ferro da Oligarquia e torna a ideia de democracia inviável.

A apreciação de alguns excertos do livro permite um conjunto de reflexões sobre a natureza da democracia. Escreve Burnham:

"A existência de uma classe minoritária dominante é , deve ser sublinhado, uma característica universal de todas as sociedades organizadas das quais temos registo. É válida independentemente da forma social ou política – quer a sociedade seja feudal, capitalista, baseada no trabalho escravo, colectivista, monárquica, oligárquica ou democrática, independentemente das leis e constituição, independentemente das convicções e religiões(…)

Pela teoria da classe dominante Mosca refuta dois erros generalizados, os quais, embora opostos, são frequentemente assumidos como válidos pelas mesmas pessoas. O primeiro, que vem ao de cima nas discussões sobre tirania e ditaduras e é familiar nos populares ataques actuais aos tiranos contemporâneos, é a de que a sociedade pode ser governada por uma única pessoa. Mas Mosca observa que o homem que está à frente do Estado não seria certamente capaz de governar sem o apoio de uma numerosa classe que assegure o respeito pelas suas ordens e que as aplique, e mesmo que ele possa fazer um indivíduo, ou vários, na classe dominante, sentir o peso do seu poder, ele não pode estar em confronto com a classe como um todo ou dispensá-la. Mesmo se isso fosse possível ele seria forçado a criar uma nova classe,sem o apoio da qual as suas acções estariam completamente paralisadas(…)"


Isto significa que a real distinção entre um regime não democrático e um regime democrático não se faz por aqui, visto que ambos são liderados por uma elite dirigente, isto é, mesmo as chamadas ditaduras não são, em boa verdade , o governo de um homem só.

"O outro erro, típico da teoria democrática, é a ideia de que as massas, a maioria, pode governar-se a si própria. Isto não é verdade nem para os governos que assentam no sufrágio universal(…)"

2 Comentários:

Anonymous Anónimo disse...

Acabei de ler esta primeira parte e estou encantado. Dá-me a impressão que Pareto, Michels e Mosca - a chamada escola elitista italiana - são autores pouco conhecidos e ainda menos estudados, o que é pena.

Agora vou ler o resto e já cá volto.

NC

11:58 da tarde  
Anonymous Anónimo disse...

Where did you find it? Interesting read » »

3:55 da manhã  

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