sexta-feira, março 03, 2006

Anatomia da democracia(2 de 3)

Prosseguimos com Burnham:

“Do ponto de vista da teoria da classe dominante, cada sociedade é o espelho dessa sua classe. A força de uma nação,a sua fraqueza, a sua cultura, a sua capacidade de resistência, a sua prosperidade, a sua decadência, dependem, numa primeira instância, da natureza da sua classe dirigente. Em particular, a forma de estudar uma nação, de a compreender, de prever o seu rumo, requer antes de tudo e primeiramente uma análise da sua classe dominante. A História política e a ciência política são pois, predominantemente, a História e a ciência das minorias dominantes, a sua origem, desenvolvimento, estrutura e mudanças. Por mais arbitrária que seja a ideia de História como História das elites, a verdade é que todos os historiadores, na prática até historiadores como Tolstoi ou Trotsky, cujas teorias contradizem-no, são compelidos a escrever nesses termos. Se por mais nenhuma razão será porque as grandes massas da humanidade não deixam quaisquer registo na História excepto aquele que é expressado ao serviço, ou pela liderança dos indivíduos notáveis e invulgares (…)

Uma classe dominante expressa o seu papel e posição através daquilo que Mosca chama uma fórmula política. Esta fórmula racionaliza e justifica o seu domínio e a estrutura da sociedade sobre a qual exerce esse domínio. A fórmula pode ser um “mito racial”, como na Alemanha Nazi ou neste país em relação aos negros e asiáticos: o domínio é então explicado como a prerrogativa natural da raça superior. Ou pode ser um “direito divino”, como nas teorias elaboradas em relação às monarquias absolutistas do século XVI e XVII ou no imperialismo tradicional japonês: nesse caso o domínio é explicado como decorrendo de uma relação peculiar com o divino, frequentemente pela descendência hereditária( estas fórmulas eram muito comuns em tempos anteriores e não perderam completamente toda a eficácia). Ou, para citar a formula que nos é mais familiar, e a funcionar agora nesta país, uma crença na “vontade do povo”: o domínio é então apresentado como sendo legitimado pela vontade ou escolha popular expressada por algum tipo de sufrágio(…)

Dentro de todas as classes dominantes Mosca mostra ser possível distinguir dois princípios, como lhe chama, e duas tendências. Estes são, pode ser dito, as leis de desenvolvimento das classes reinantes. A sua força relativa estabelece as mais importantes diferenças entre as várias classes dominantes. O princípio autocrático pode ser distinguido do princípio liberal. Estes dois princípios regulam, primeiramente, o método pelo qual os governantes e os líderes sociais são escolhidos. Em qualquer forma de organização politica a autoridade é transmitida de cima par baixo na escala politica ou social(o principio autocrático) ou de baixo para cima( o principio liberal). Nenhum dos princípios viola a lei geral que estabelece que a sociedade está dividida numa minoria dominante e numa maioria liderada, o principio liberal não significa, independentemente da sua extensão, que as massas governem de facto, mas apenas dá uma forma especifica à eleição da liderança. Raramente, provavelmente nunca, apenas um dos princípios opera numa classe dominante. Estão geralmente misturados, sendo um ou outro prevalecente. Algumas monarquias absolutas ou tiranias mostram a maior aproximação a um princípio autocrático puro, com todas as posições formalmente dependentes de nomeação pelo déspota. Algumas pequenas cidades-estado, como Atenas num certo período da História, chegaram muito perto de um principio liberal puro, com todos os oficiais escolhido a partir de baixo, mas os votantes eram ao mesmo tempo um grupo restrito. Nos Estados Unidos, como na maioria dos regimes representativos modernos, ambos os princípios estão activos. A maior parte do aparelho burocrático e judicial, especialmente o federal, é uma expressão do princípio autocrático, o Presidente e o Congresso são seleccionados de acordo com o princípio liberal.

Cada princípio apresenta na prática vantagens e desvantagens típicas(…)A autocracia parece dotar as sociedades de maior estabilidade e maior durabilidade do que o princípio liberal. Quando a autocracia funciona bem consegue promover a selecção da liderança mais apta de todos os estratos da sociedade para realizar as diferentes tarefas do Estado.Em compensação a autocracia parece incapaz de permitir um completo e livre desenvolvimento de todas as forças sociais – nenhuma autocracia estimulou tanto a vida cultural e intelectual como alguns curtos sistemas liberais, por exemplo na Grécia e Europa ocidental. E na selecção dos líderes pela autocracia, o favoritismo e o preconceito pessoal facilmente tomam o lugar do julgamento objectivo do mérito, enquanto o sistema encoraja o servilismo e a bajulação por parte dos candidatos.O princípio liberal, por outro lado, estimula mais que a autocracia o desenvolvimento de variadas potencialidades sociais , mas ao mesmo tempo de modo algum evita a constituição de elites fechadas no topo, como na autocracia, simplesmente o modo de formação dessa elites é diferente(...)

É possível haver, como já existiram, apesar das opiniões comuns em contrário, autocracias que são de tendência democrática e sistemas liberais que são de tendência aristocrática. O facto é que ambas as tendências, democráticas e aristocráticas, estão sempre operativas dentro de qualquer sociedade. A predominância de uma delas dá-se geralmente na sequência de um período de rápida, e frequentemente revolucionária, mudança social(…)

Não há sociedades governadas pelo povo, por uma maioria, todas as sociedades, incluindo as ditas democráticas são governadas por uma minoria.A fórmula democrática e a prática do sufrágio não significam o governo do povo. Exercem contudo um particular tipo de influência na selecção dos membros da classe dominante(…)a fórmula democrática e a introdução de mecanismos de sufrágio mais abrangentes enfraqueceu a posição da antiga aristocracia não-democrática e ajudou a ascensão da nova elite capitalista. A disseminação da fórmula democrática e das práticas eleitorais foram um factor importante, até essencial, na subida dos capitalistas à posição dominante na moderna classe dirigente.(…)

Se perguntamos quais são os principais efeitos, no nosso tempo, da fórmula democrática e do mecanismo de sufrágio teremos de responder que eles reforçam a tendência internacional para o bonapartismo…um pequeno grupo de lideres, ou um único líder, afirmam representar e falar por todo o povo.”