O homem europeu face ao indivíduo
Nestas poucas linhas, escritas por Schmid com o propósito de distinguir o homem europeu, encontra-se antes a negação do mesmo e a profecia do declínio da Europa. Este “homem europeu”, ali descrito, habita hoje dos extremos Este a Oeste do Continente.
Ao isolar a consciência humana daquilo que é exterior ao “eu”, ao isolá-la da História, da comunidade, do passado, o homem europeu deixou de existir; Schmid não está já a caracterizar o homem europeu, ele está a caracterizar o novo homem, o homem saído do pós-guerra, o homem desenraizado, cosmopolita, o homem universal, sem identidade, o homem que se justifica apenas perante si, deificando a razão, e aqui reside o seu equívoco.
Por um lado, se o novo homem corta a relação entre a consciência e o seu mundo exterior, a História e a sociedade, ele não pode ser europeu, porque o conceito de homem europeu pressupõe uma ligação à ideia de Europa, logo àquilo que a define, à sua história, às suas tradições, comunidades, espiritualidade, a uma ideia de civilização, a uma mundividência e a um conjunto de valores partilhados que se afirmam quase intuitivamente e que fazem com que, por exemplo Susan George afirme: “Não tenho qualquer teoria sobre a Europa mas uma regra muito simples. Confio na intuição. Eu sei quando estou na Europa. Estou lá em Madrid, Berlim, Liège, Amesterdão, Copenhaga, Estocolmo, Londres ou Lisboa; em Praga, Florença, Viena ou Dublin; em Moscovo, São Petersburgo , Helsínquia ou Atenas; e mesmo em Cluj, na Roménia. Estou um pouco menos em todos os quarteirões de Istambul(…)”[1]
De outra parte, a submissão da conduta humana à glorificação da “razão”, sem nada mais, parte do princípio que é possível à razão exceder a “condicionalidade” ou a “especificidade”, rejeitando a História e a tradição, e, como tal, acaba necessariamente por pretender estabelecer verdades universais, e é este universalismo latente que, uma vez mais, permite rejeitar a ideia de que o homem que apenas se explica perante a sua consciência, exaltando a razão, possa ser o homem europeu, é uma antinomia, o que é exclusivamente europeu não pode ser universal.
Edmund Burke contrapõe a esta ilusão de autoridade incondicional da razão a ideia de tradição ou preconceito como factor de “sensatez latente” que permite guiar a razão, esta deixa assim de ser incondicional. Burke defende que a razão não oferece qualquer direcção normativa e é portanto incapaz de estabelecer autonomamente os seus próprios fins. Só as tradições e os preconceitos solidificados pela História podem definir uma orientação normativa em vista aos fins adequados: “quando opiniões e regras da vida antigas são retiradas, a perda não pode ser possivelmente estimada. A partir desse momento não temos bússola que nos dirija, nem podemos saber distintamente para que porto navegamos”[2]. Ou seja, só a razão contextualizada, situada numa tradição, pode ser dotada de valores e objectivos. A razão não pode avaliar criticamente as suas próprias predeterminantes, não tem, por isso, autonomia e não é passível de se auto-legitimar, só analisada à luz de tradições e culturas específicas pode ser validada.
A dignidade do indivíduo de Schmid, desligada do passado, do grupo, reverente a uma razão sem contingências históricas, nacionais, tradicionais, é uma quimera que a uniformização proporcionada pelo novo mundo globalizado procura. No mundo da cultura única, do povo único, da comunidade universal, a razão aproxima-se da sua autoridade incondicional, mas é uma razão estabelecida e controlada por quem controla o poder e a opinião, são os projectistas e dirigentes deste construtivismo social que conduz a humanidade para o pensamento único que definem essa razão, por consequência, despontando o "admirável mundo novo”, todos os que reneguem as “verdades” celebradas não agem em função da razão, serão os novos irracionais, e entre eles se encontrará o verdadeiro homem europeu.
[1]Saindo de Istambul não estaria de todo
[2]Edmund Burke, "Reflections on the French Revolution"