Definir o que é a direita é tarefa árdua, muitas vezes pouco consensual, e implica uma análise histórica e sociológica que não cabe agora aqui. É possível, no entanto, sem particular esforço ou polémica, identificar o que não é a esquerda. Definir a direita por rejeição ou oposição ao que é a esquerda tem aliás sido uma constante na análise política e servirá os propósitos desta breve reflexão.
Com a esquerda identificarei duas ideias base, o igualitarismo e o construtivismo social progressista. O igualitarismo é a negação da justiça pois que esta implica o reconhecimento da desigualdade, há os que trabalham mais, os que têm mais virtudes, os que têm mais capacidades, e a estes deve a justiça mais.É importante ter presente que o igualitarismo da esquerda não se reporta, ou pelo menos não se confina, à ideia de igualdade perante a lei.
O construtivismo social progressista assenta na premissa de que o homem e a sociedade( expressão colectiva desse homem) podem ser totalmente moldados através de fenómenos de engenharia política e social, pela burocracia, rumo a uma sociedade tendencialmente “exemplar”.
Este construtivismo social é incompatível com identidades culturais, religiosas, nacionais, no fundo com o enraizamento das populações, pois pressupõe que é possível manipular e formatar a sociedade para além dos factores de identidade colectiva.
A sociedade torna-se deste modo pautada quase em exclusivo pelas relações do homem com o mercado, o mundo laboral e o rendimento. É assim que se entende a defesa por parte da esquerda da nova sociedade multicultural. Tomando por menores ou insignificantes as dimensões identitárias do homem é possível fazer um discurso apologético de um pluralismo fictício que implica a convivência num mesmo espaço de identidades culturais, históricas ou religiosas completamente distintas e até contraditórias subordinadas à ideia de que o bem-estar ou realização do homem dependerá quase unicamente da redistribuição do rendimento, mesmo se este objectivo é por vezes procurado por mecanismos indirectos( a discriminação positiva, por exemplo). Isto implica necessariamente a ideia de um Estado alargado, o objecto ou utensílio através do qual se processa esta engenharia social.
Surgem assim facilmente identificáveis 3 grandes grupos (existem aqueles que não fazendo integralmente parte de qualquer destes se aproximarão de algum, já que esta é uma sintética generalização) que caem fora daquilo que é a esquerda, pela rejeição total ou parcial de princípios fundamentais distintivos dessa esquerda - e que não estão totalmente contemplados nesta análise - serão a sua antítese ou a direita, grosseiramente definida( pelo menos assim serão classificados aqui, tendo sempre em atenção que uma caracterização real da direita implica uma abordagem diferente e muito mais complexa).
1-Os nacionalistas, pela rejeição do igualitarismo em favor da justiça e da hierarquia de mérito, pela defesa da dimensão identitária do homem e da nação, pela recusa do economicismo, compreendendo que o homem não se realiza exclusivamente pelo mercado e que o económico se deve sujeitar ao superior interesse da nação, espaço de realização e liberdade colectiva dos indivíduos, pela rejeição do construtivismo político e social que não respeita a identidade histórica da nação e pela recusa da ideia preponderantemente jurídica do Estado, muitas vezes oposta à edificação do Estado como expoente de uma comunidade orgânica erigida em valores partilhados.
2- Os conservadores, que embora de derrota em derrota, pela própria natureza abdicante do conservadorismo, continuam a ser uma força apostada em defender valores que se opõem à mundividência esquerdista; a defesa da família tradicional, da Igreja, da propriedade, de uma ordem moral que assenta na aceitação de Deus e na imperfeição da natureza humana, a recusa do ideário revolucionário. Tudo isto choca com o utopismo e optimismo antropológico da esquerda e a sua ideia de reconstrução social através do Estado, tendo o indivíduo enquanto final da “acção” e geralmente desligado de uma qualquer ordem transcendente.
3- Os liberais (no sentido europeu da designação), que embora partilhando com a esquerda uma visão materialista do mundo divergem desta nos pressupostos e objectivos de que partem e a que aspiram. Enquanto os liberais glorificam o mercado e a desigualdade que daí advém como tradução do mérito individual a esquerda tem no mercado, ou nas relações laborais, o seu eixo de reflexão mas procurando controlá-lo para servir o construtivismo social que referi. Os primeiros radicalmente individualistas, os segundos mais colectivistas, os primeiros vendo no Estado um factor de restrição da liberdade , os segundos vendo-o como estrutura de protecção do homem face à sua própria percepção da injustiça( que fazem constantemente convergir com uma ideia de desigualdade).
Face a isto impõe-se perguntar o que permitiu nestas presidenciais referir a vitória de Cavaco Silva como um triunfo da direita. Que direita? Cavaco não é um nacionalista, não é um conservador, não é um liberal; é um social-democrata e como escrevi num texto anteriormente aqui publicado, a social-democracia não é nem nunca foi uma ideologia de direita, pelo contrário, os seus princípios são de esquerda.
O nacionalismo, de resto, não é de direita ou esquerda, defini-lo aqui como direita deve ser entendido, como afirmei anteriormente, no sentido em que o nacionalismo é antagónico em relação aos princípios sociais próprios das esquerdas ao mesmo tempo que partilha com alguma direita alguns pontos comuns. Apenas assim deve ser compreendida esta classificação. Mas Cavaco é tudo menos um nacionalista. No debate que travou com Louçã assisti a um dos momentos mais hilariantes desta campanha e bastante revelador da pobreza intelectual do novel presidente. Ao abordar o tema da imigração Cavaco mostrou-se de acordo com o actual enquadramento legal do fenómeno tal como com a nova lei da nacionalidade, e afirmou qualquer coisa como :”É preciso controlar a imigração para não corrermos o risco de nos tornarmos uma minoria no nosso país”. A frase é fascinante mas encerra um paradoxo ainda mais encantador, se ele está de acordo com a actual lei da nacionalidade, que no essencial não difere grande coisa de todas as anteriores, como é que pode afirmar que a imigração encerra o risco de tornar os portugueses minoritários em Portugal?
Ora, se a actual lei de imigração se junta a um critério de nacionalidade que não respeita qualquer ideia de interligação entre o passado fundador e um futuro comum de uma comunidade histórica, significa isto que os portugueses passam a ser simplesmente aqueles que pela actual lei assim se tornem, independentemente da sua filiação ancestral. Criam-se portugueses por decreto! Isto é a própria negação do que é uma nação, amanhã se mudará a legislação e mudarão com isso os critérios definidores da nacionalidade e os portugueses, e assim sucessivamente. Sendo assim qual é o preceito que permite definir se os portugueses são minoritários ou maioritários em Portugal? Aqueles que hoje entram serão portugueses daqui a uns poucos anos, através de um processo burocrático. É este o paradoxo, com base nestes critérios de nacionalidade os portugueses nunca poderão ser minoritários, já que o tempo se encarregará de transformar os estrangeiros em novos “portugueses”, uma vez que a nacionalidade passou a ser definida e alterada pelo parlamento ao sabor de interesses políticos. Este raciocínio de Cavaco Silva foi, mais que tudo, revelador do pensamento de alguém que nunca reflectiu sobre o que é a identidade nacional e não faz a mínima ideia do que a define. É obvio que os portugueses, como os outros povos da Europa Ocidental, caminham para ser uma minoria nos seus países, mas é precisamente por causa das leis de nacionalidade que o dito senhor apoia.
Cavaco também não é um conservador, conquanto não ande longe da descrição política que hoje assume o termo, está porém distante da filiação doutrinal que os verdadeiros conservadores (cada vez mais raros) assumem, como não é um liberal, apesar de menos estatista que os seus opositores eleitorais continua a ver o Estado como alavanca necessária para o desenvolvimento económico do país, na senda do que foi a sua governação, marcadamente keynesiana.
Que alguns daqueles que fazem parte de qualquer destes três grupos tenham votado em Cavaco representará pouco como expressão da vontade da direita. Alguns conservadores e alguns liberais terão votado no mal menor. Afinal para alguns conservadores contará que o homem até vai à Igreja, não tem um passado revolucionário nem simpatias por tais posições e os liberais, desprovidos de representação partidária, sempre se lembrarão que Cavaco vem de um partido que, sendo social-democrata, tem sectores liberais no seu seio e é por isso mais facilmente permeável ao seu pensamento. Quanto aos nacionalistas nenhuma razão válida se encontra para o voto em Cavaco ou o júbilo pela sua vitória que não seja um sentimento de repúdio ou vendetta face a alguma esquerda que se dispôs a votos, uma face infantil de uma “direita nacional” que tarda em perceber o seu caminho, em libertar-se de fantasmas do passado, de saudosismos pacóvios ou em desligar-se do paternalismo americano, e isto sem cair, como tem caído, no espectáculo de folclore carnavalesco tão do agrado da comunicação social.
Três tiros no escuro, e o dos eventuais nacionalistas foi o que mais longe passou do alvo. Não houve vitória alguma da direita porque a direita não concorreu, houve, isso sim, uma vitória clara do centro-esquerda. Não significa isto que tivesse havido candidato de direita deveria merecer o voto nacionalista, isso dependeria do candidato e da direita que representasse, porque há direitas que são tão prejudiciais à nação como a pior das esquerdas. Serve apenas para lembrar que tudo tem o seu lugar, que Cavaco não é de direita e que não cabe à esquerda ditar o que é a direita, essa ditadura de consciências que a esquerda impõe é apenas mais um exemplo de como tem sido inclinado o eixo político, de tal forma que indivíduos de centro-esquerda já são catalogados à direita. O resultado é que a deslocação do eixo político permite acantonar cada vez mais famílias da direita num espaço considerado radical ou extremo. Ou seja, aquilo que há umas décadas seria uma direita socialmente aceite, com naturalidade, vai progressivamente sendo empurrado para o extremo do espectro político, criam-se as novas “extremas-direitas”.O benefício que a esquerda retira disto é evidente, mais que não seja porque o papão dos extremistas de direita continua a fazer tremer um povo que manifesta claras dificuldades em fugir ao condicionamento da informação oficial.